CADA UM TENTA ENCONTRAR
AQUILO QUE PROCURA
Cada um tenta encontrar aquilo que procura,
a abelha a flor viva e fresca, o abutre a carcaça apodrecida.
Uns saciam-se de vida, outros satisfazem-se com o que a morte
lhes oferece.
Tempo e paciência. Tempo e paciência.
Nós não estamos em paz, nunca estamos em paz,
não sabemos sequer a intensidade que tem a nossa fé.
Procuramos a beleza sem capacidade para preservar a beleza
das coisas mais belas que herdámos, objectos, costumes, pensamentos,
até mesmo a simplicidade que a natureza fabrica.
O lema é não sentir nada, nem sequer simpatia, pelos vivos,
pelos mortos, pelos moribundos.
Manter o inimigo por perto é a estratégia. Quem,
de entre nós, não atirou já uma segunda pedra?
Trago para ti alguma coisa. Alguma novidade? Sinto
que posso contar-te tudo, sou eu que devo confessar-me.
Amaste-me? Eu também te amei, amo-te ainda
com um amor que irá sobreviver-me.
O meu pai partiu com o pai dele num pequeno navio
cujo pavilhão pertencia a um país que não terá lugar na história,
onde o egoísmo e a miséria passavam as fronteiras livremente.
Quando chorava em pequeno bastava-me uma canção
de embalar,
hoje preciso de ouvir a tua voz, tendo o direito de permanecer calado.
Venho da idade da pedra. Mesmo de antes. Muita gente
quer saber como estou. O mais sensato é fingir que não os ouço,
voltar a casa definitivamente.
Os peixes da ignorância nadam contra a luz.
Quando acaba a montanha começa o trabalho azul dos
camponeses
e a canção da chuva e a metamorfose da semente e a voz essencial dos pássaros.
Um instante de beleza pode demorar a vida inteira.
Não há heróis nem santos. O boi é um deus que trabalha por
cinco homens,
há uma linguagem musical que é o coro do sofrimento,
os arcanjos e os anjos têm os pés inchados e as penas e a pele fedem de transpiração.
Apanho um comboio e um barco, viajo para lá do acontecimento
que é sentir-me ser dali. Vou-me embora de mim.
Este diálogo não acabou e não acabará nunca. Vou
com os camponeses da cidade, feliz como um animal doméstico,
por vezes como um cão vadio no inverno, cuja felicidade
é apenas atingir a primavera seguinte.
Vou com as gaivotas que procuram a vida
nos milhares de toneladas de lixo da civilização. Vou também
com a dor de todos os massacres e com os missionários confortáveis
que querem governar o mundo sem saber governar o próprio estômago.
E vou ainda com. E com. E com. E com.
E vou ainda.
Joaquim Pessoa
in VOU-ME EMBORA DE MIM