segunda-feira, 27 de abril de 2015

OS PÁSSAROS DE DEUS


Foto: zimbabwe Rich Johnson


“Os pássaros de Deus”


Quando regressava da pescaria, não tinha mais defesa para os olhos da mulher e dos filhos que se espetavam nele. Pareciam olhos de cachorro, custava admitir, mas a verdade é que a fome iguala os homens aos animais.

Mia Couto

No conto “Os pássaros de Deus”, do livro Vozes Anoitecidas

terça-feira, 14 de abril de 2015

O GRITO HUMANO




O GRITO HUMANO
Ou
“A matança dos inocentes”


Longe de mim lembrar de novo o real Nabuco
Que um povo inteiro em seus escravos transformou
E nem sequer Herodes que foi Grande e louco
Que aos filhos de Belém um dia horrorizou…

Nem me passam p´ la mente as tétricas arenas
Para onde eram lançadas vítimas indefesas
Por entre as feras e as Cesárias cantilenas
E os meninos a arder em suas vestes presas.

Longe de mim lembrar a imagem inocente
Da Cruzada infantil p´ la agreste Ásia Menor,
Sem esquecer de Átila a vil sanha ardente
Que inspirou de Hernandes a sangrenta dor…

Quero recordar, sim, o grito bem realista
De milhares e milhares de humanos feitos “besta”
E o traficante impávido, torpe e vigarista,
Cantando loas a uma burguesia em festa.

Quero relembrar, sim, já tão perto de nós,
Os tirânicos autistas – génios mundiais –
Que ergueram seus Impérios, abafando a voz
Dos povos subjugados por lucros abissais.

E não posso esquecer aqueles genocídios
De um holocausto trágico qual selva aziaga,
Que não fez pejo em planear infanticídios
À filosófica luz de uma ciência amarga.

E não posso esquecer as taras e manias
Que à sombra libertária de cegueira afável
Conduzem aos coqueteiles vitais de fantasia
E que resultam num falhanço incontornável.

E não posso esquecer os crimes e atitudes
De iluminados por teoremas controversos
Que ousam fazer passar por salutares virtudes
A solução final de lideres tão perversos.

Quero, acima de tudo, memoriar as vidas,
Aquelas Vidas de engrenagem enviuzada, 
No seio triste das famílias desunidas
Por uma violência atroz e desalmada.

Fala-se tanto que não há emprego nem pão,
E casa sem ter pão, sem ter luz, é enfadonha
Fazendo acrescentar a negra inquietação
Paredes-meias com a morte ou a vergonha.

Eu sei que os Maiorais estão-se borrifando,
Fazendo orelhas moucas a esta gente mansa,
E esperam, afinal, que o tempo vá passando
Até que não se fale mais desta matança…

Ó grito claro dos nascidos para sofrer,
Ó crianças de colo, ó jovens sem aurora
Sem esperança nem horizontes p´ra crescer 
Que aura memorial quereis aqui e agora?

Ó grito lancinante de desesperação-
Amordaçada voz travestida de consenso-
Quem ouvirá o brado e traçará co´ a mão
Um xeque-mate a todo este inferno imenso?

Frassino Machado

In MUSA VIAJANTE

domingo, 12 de abril de 2015

À ERA DOS CIBERNAUTAS




O V IMPÉRIO DO MUNDO 


“À Era dos Cibernautas”


Nunca estarei falando de Nabucodonosor,
Nem ´starei discursando sobre o império Ciro, 
Nem mesmo de Alexandre ou até de Adriano,
Não desfazendo de Filipe o seu valor…
O verdadeiro Império, aquele que refiro,
Aquele que s´ ultrapassa por ser tão ufano,
Passando pelo Magno Otão ou Bonaparte,
É, certamente - e revelou-se soberano -
O Império da Razão, das Luzes e da Arte,
Do grande Diderot, do Cosmos estandarte.

Eu não quero saber de Heraclito ou Platão
E nem me interessa recorrer a Galileu,
Nem muito menos a um Erasmo de Roterdão,
Mas apenas porque o saber reconheceu
Que o prestígio do pensamento não destoa,
Quer seja oriundo de Espinosa, Kant ou Freud, 
Já estão latentes na aurora dos que os seguem,
Não esquecendo o aroma de Vieira ou de Pessoa.
E se houver argumentos qu´ inda assim não cheguem
Outros, quem sabe, à mesma odisseia s´ entreguem.

Se é certo Gutemberg, Képler e Copérnico
Retomarem as vestes dos iluministas,
Garantindo a Colombo e a Magalhães currículo, 
Abrem-se os horizontes para mais conquistas
Pelas magistrais buscas do casal Curie
E assim, abençoando Einstein e Heisenberg, 
Cujo crucial elan, chegado a Berners Lee,
Um outro Quinto Império em breve se prossegue:
O da Mente-cultura, novo pensamento,
Que assenta em Diderot a fama e o fermento.

Todo o planeta, gerando a Terra clareada
Em novas teses, movimento e nova ética,
Vai abrindo ao Universo a face estruturada
Com outro som, com outra luz e outra estética.
Que, transformando a profecia em maravilhas,
Enriquecem a Vida com brilho e emoção
Logrando aproximar os sonhos e as partilhas.
Tal é a aura da Global Comunicação -
Quinto Império do Mundo – repleta de esperança 
Que mora em toda a Humanidade feita criança!

Frassino Machado

In MUSA VIAJANTE

CADA UM TENTA ENCONTRAR


    Foto de Jerry N Uelsmann


     CADA UM TENTA ENCONTRAR 

    AQUILO QUE PROCURA  


    Cada um tenta encontrar aquilo que procura, 
    a abelha a flor viva e fresca, o abutre a carcaça apodrecida.
    Uns saciam-se de vida, outros satisfazem-se com o que a morte
    lhes oferece.
    Tempo e paciência. Tempo e paciência.
    Nós não estamos em paz, nunca estamos em paz,
    não sabemos sequer a intensidade que tem a nossa fé.
    Procuramos a beleza sem capacidade para preservar a beleza
    das coisas mais belas que herdámos, objectos, costumes, pensamentos,
    até mesmo a simplicidade que a natureza fabrica.
    O lema é não sentir nada, nem sequer simpatia, pelos vivos,
    pelos mortos, pelos moribundos.
    Manter o inimigo por perto é a estratégia. Quem,
    de entre nós, não atirou já uma segunda pedra?
    Trago para ti alguma coisa. Alguma novidade? Sinto
    que posso contar-te tudo, sou eu que devo confessar-me.
    Amaste-me? Eu também te amei, amo-te ainda
    com um amor que irá sobreviver-me.
    O meu pai partiu com o pai dele num pequeno navio
    cujo pavilhão pertencia a um país que não terá lugar na história,
    onde o egoísmo e a miséria passavam as fronteiras livremente.
    Quando chorava em pequeno bastava-me uma canção
    de embalar,
    hoje preciso de ouvir a tua voz, tendo o direito de permanecer calado.
    Venho da idade da pedra. Mesmo de antes. Muita gente
    quer saber como estou. O mais sensato é fingir que não os ouço,
    voltar a casa definitivamente.
    Os peixes da ignorância nadam contra a luz.
    Quando acaba a montanha começa o trabalho azul dos
    camponeses
    e a canção da chuva e a metamorfose da semente e a voz essencial dos pássaros.
    Um instante de beleza pode demorar a vida inteira.
    Não há heróis nem santos. O boi é um deus que trabalha por
    cinco homens,
    há uma linguagem musical que é o coro do sofrimento,
    os arcanjos e os anjos têm os pés inchados e as penas e a pele fedem de transpiração.
    Apanho um comboio e um barco, viajo para lá do acontecimento
    que é sentir-me ser dali. Vou-me embora de mim.
    Este diálogo não acabou e não acabará nunca. Vou
    com os camponeses da cidade, feliz como um animal doméstico,
    por vezes como um cão vadio no inverno, cuja felicidade
    é apenas atingir a primavera seguinte.
    Vou com as gaivotas que procuram a vida
    nos milhares de toneladas de lixo da civilização. Vou também
    com a dor de todos os massacres e com os missionários confortáveis
    que querem governar o mundo sem saber governar o próprio estômago.
    E vou ainda com. E com. E com. E com.
    E vou ainda.

    Joaquim Pessoa 

    in VOU-ME EMBORA DE MIM