VIAGEM AO PASSADO
Linda casa térrea de branco caiada,
Com azul na faixa toda em rodapé,
Dois quartos e a sala meia mobilada,
Ao lado a cozinha e a porta de entrada,
Com “mochos” e bancos junto à chaminé!
Nos dias de inverno nevava ou chovia,
Não se trabalhava como de costume,
No telhado entrava uma aragem bem fria,
Porém na lareira o madeiro ardia
E a família inteira circundava o lume!
De barro a panela contendo o almoço,
Também já fervia exalando aromas,
A couve e as batatas e a carne com osso,
Muito pouca carne, lembro-me era moço,
Qual colesterol? - Nem sequer sintomas!
Lá fora na horta tudo germinava,
Ao sabor do tempo na estrumada terra,
Negra criadora como mãe cuidava,
De acolher sementes que depois gerava,
Com o sol e a água que o percurso encerra!
Batatas, cebolas, alhos e pimentos,
Feijão verde, alfaces, nabos e cenouras,
Tomates pepinos e outros alimentos,
Melões, melancias, capam-se os rebentos,
Para dar mais força nas frutas vindouras!
Mas também na horta crescia a cidreira,
Erva S. Roberto, malvas, doce lima,
Que tudo tratavam até catarreira,
Qual médico atento mesma à nossa beira,
Que ao deitar bebido logo reanima!
Também importante, era o limoeiro,
Que as folhas em chá e raspas de limão,
Com mel e bem quente, manda o curandeiro,
Que bem se agasalhe na cama primeiro,
Para ver curada essa constipação!
Para além da horta, se estendia a quinta,
Com as laranjeiras, pereiras, pereiros
E outras mais fruteiras mais de cento e trinta,
Que a minha memória não deixa que minta,
Como era gostoso ver os pessegueiros!
As parreiras altas fazendo latadas,
Em túnel deixando passarmos por baixo,
Era uma beleza vermos penduradas,
As uvas mais doces e de cores douradas,
Tão apetecíveis em forma de cacho!
Sem esquecer é claro das já centenárias,
Belas oliveiras de verde vestidas,
De azeitonas cheias, qualidades várias,
Enchendo de azeite muitas luminárias,
Temperando sempre todas as comidas!
Nesta bela quinta também existiam,
Um porco, uma vaca, coelhos, galinhas,
Um burro com força de que se serviam,
P’ra lavrar a terra e também conciliam,
Puxando a carroça bem cheia de ervinhas!
De nome Bonita dava p’la manhã,
P’ra toda a família e até p’ra vender,
Pois em quantidade, era campeã,
Saboroso leite de que eu era fã,
E até a manteiga aprendi a fazer!
Um cruel destino pr’ó porco coitado,
Depois de estar gordo findava a alegria,
Sendo repartido e muito bem salgado,
Numa salgadeira era conservado,
Como uma reserva para o dia-a-dia!
Galinhas, coelhos, também se vendiam,
Alguns, que não todos, eram reservados
E em dias de festa também se comiam,
Pois quem os criava decerto mereciam,
Provar tais petiscos à solta criados!
Tinha dez mil metros a quinta em questão,
Dois poços um tanque e às vezes piscina,
Porque no Alentejo é bem quente o V’rão,
Pr’á alourar o trigo que vai fazer pão,
E onde a vida passa calma e paulatina!
Tudo isto foi lindo, tudo isto existiu,
Até ao momento que a negra ceifeira,
Partiu com as vidas deixando um vazio,
Na quinta que agora nos causa arrepio,
Sem ver sobreviva uma laranjeira!
Tudo o que era verde, secou e morreu!
Caiu o telhado da casa que o era!
As silvas chamaram ao terreno seu
E a velhinha quinta desapareceu,
Como se o passado fosse uma quimera!...
© J. M. Cabrita Neves | 11/2021
* “mochos”- bancos em madeira com o assento em palma ou junco.