sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O PERÚ DE NATAL


Imagem: November Turkey Quilt Block Pattern


O PERÚ DE NATAL 


A loja do Manuel era simples e mágica como todas as mercearias das aldeias pequenas. Tinha uns armários de carvalho que cobriam as paredes quase até ao tecto, algumas prateleiras eram protegidas por vidros, mas a maioria expunha simplesmente os produtos ao olhar dos fregueses: farinhas, latas de atum ou sardinhas em azeite, fósforos, umas garrafas de vinho do Porto, uns licores, brandes e aguardentes finas.
...
Sobre o enorme balcão de madeira, a balança de pratos era a figura central – por ali passava quase tudo. Ao lado estavam os pesos de metal. Parecia uma família, uns maiores que eram os pais, e depois a criançada dos pesos pequenos e pequeninos. E esta família tinha uma casa, uma caixinha com os redondos exactos em que cada peso se incrustava, mas o Manuel não tinha tempo para essas coisas e ficavam desarrumados no balcão, ao lado das caixas dos rebuçados de mel, como se as crianças estivessem no recreio e os pais a vigiar. 
- Ó senhor Manuel, avie-me lá um quarto de açúcar amarelo, por favor…
Abria a tampa de madeira da tulha, enchia um cartuxo de papel pardo que depois batia em cima da pedra mármore do balcão para o açúcar assentar. Colocava-o na balança e com uma corredora de alumínio, deitava ou retirava mais uma ou duas pitadas de açúcar loiro para acertar o peso. Depois dobrava as pontas do cartucho deixando umas orelhas atrevidas, e colocava-o no balcão com um sorriso adocicado como o cheiro que ficava no ar. 
- Aqui tem D. Bárbara, precisa mais alguma coisa?... o senhor Arménio como vai? – dizia ele subindo para o estrado de madeira, o que lhe dava um ar mais distinto ao balcão.
- Vai bem, obrigada! Aponte lá no livro, por favor, já cá passo no final do mês!
O Manuel apontava. Era freguesa de confiança, gente séria, o marido era feitor de uns senhores de posses, no acabar do mês sabia que ela trazia as moedas contadas para desarriscar o nome.
...
“Ó sô’ Manuel, assente lá, que o patrão logo passa cá a pagar”, dizia ela. Só que o patrão não passava e os números aumentavam no livrinho preto, quadriculado, onde o Manuel fazia as contas de somar. 
- Ó home’ vai lá bater-lhes à porta… é Natal, devem ter dinheiro! 
- Ó mulher, vou agora bater às portas do doutor… ainda se amofinha co’a gente! E se depois precisamos do home’ numa aflição, e ele está derrancado com a gente…?
- Numa aflição está a gente agora, temos o Natal a chegar e nós sem dinheiro… Vai lá a bater à porta, que pedir o que é nosso não é vergonha! Era só o que faltava! Ele a alambazar-se na consoada e nós aqui a chuchar no dedo… e com os fornecedores á perna! 
Contrariado, mas bem-mandado, Manuel lá se foi ladeira acima com o intuito de pedir satisfações ao médico. 
...
Pressentiu uma mesa farta e isso deu-lhe ânimos para agarrar no batente da porta – um punho de metal – e sacudir as madeiras com violência. Foi o próprio médico que veio abrir:
- Ó Manuel, tu por aqui? Entra lá homem, entra que está frio. Então o que te traz por cá? És tu que andas mal? Ou é a tua patroa?
Ele tirou o boné, revoluteou-o entre os dedos nervosamente. Nem sabia por onde começar. Foi olhando a mesa posta, vendo as filhós, as rabanadas, os pudins. A batata assada que estava a ser servida, o esparregado, o peru acabado de sair do forno e que a mulher colocava na mesa dentro de uma travessa de loiça. O cheiro quente chegou-lhe ao nariz e desatou-lhe a boca.
- Não se trata de maleitas, senhor doutor. Como lhe hei-de dizer… O doutor não levará a mal, mas é que tem lá uma conta já grandita na minha mercearia e… Estou aqui por mor de levar algum pagamento que as coisas lá em casa estão apertadas de dinheiros… sabe como é!
- Ó Manuel, claro que sei, homem! Se eu te contasse também a minha vida…! Nem imaginas. É como a ti, ninguém me paga, sabes como é… Olha que eu também tenho o meu livrinhos dos apontes. 
Manuel sentia que lhe estava a fugir o chão dos pés. Ainda tentou um último argumento: 
- Compreendo! Compreendo! E desculpe, ter batido na sua porta. Mas é que eu estou mesmo de bolsos revirados. Pelo menos o doutor ainda tem a mesa farta, e um bom peru assado…
Ao que logo o médico respondeu: 
- O peru? Ah, o peru! É o que te digo Manuel… se eu te contasse a minha vida. Sabes lá!!… O peru, vou-te confessar… - e chegou-se junto a ele, baixando a voz em tom de confidencialidade. – O peru, eu não queria, mas tive de o matar. Sabes porquê? É que já não tinha nada que lhe dar de comer, coitado!!!

© João Morgado, in MEIO-RICO E OUTROS CONTOS (Kreamus, 2011)