SOBRAS NATALÍCIAS
Quando se pensa no Natal
Logo se imagina a fartura
Numa abundância colossal
Que mete respeito e figura.
Quanto mais pessoas melhor
Cada um mostra o que vale
Importa qu´ se exija valor
Quando se pensa no Natal.
Haja prendas e mais alimento
Com um Pai Natal d´ aventura
Para lá do contentamento
Logo se imagina a fartura.
Com embrulhos e mais embrulhos,
E com ataduras bem ou mal,
Há mais ilusão do qu´ orgulhos
Numa abundância colossal.
- Quero uma coisa que m´ agrade –
Ouve-se a voz duma criatura –
É uma prenda de qualidade
Que mete respeito e figura.
- Neste Natal só me sai duques
E o meu Pai Natal é uma seca,
Já estou farto dos seus truques
E eu vou dormir uma soneca.
- Quando acordo só vejo sobras
Em caixas, caixinhas e sacolas,
Nada de jeito para as dobras
E o “Pai Natal” é um gabarolas!
- Oh, tanta gente a passar fome!
Se as sobras pudessem chegar
A todos, sem olhar ao nome,
Este mundo poderia mudar…
Lembrei-me agora, de repente,
Do poema NATAL DE QUEM
Que amigo poeta-competente
Compôs certo dia muito bem.
Trata duma família moderna,
Sem nenhuma crença nem luz,
Que o Pai Natal trazia à perna
Em vez do Menino Jesus:
Frassino Machado
In JANELAS DA ALMA
*
NATAL DE QUEM?
Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do peru, das rabanadas.
-- Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!
-- Está bem, eu sei!
-- E as garrafas de vinho?
-- Já vão a caminho!
-- Oh mãe, estou p’ ra ver
Que prendas, vou ter.
-- Que prendas terei?
-- Não sei, não sei...
Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:
-- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Senta-se a família
À volta da mesa.
Não há sinal da cruz,
Nem oração ou reza.
Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
-- Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!
Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papéis
Sem regras nem leis.
E Cristo Menino
A fazer beicinho:
-- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem-estar no coração.
A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
-- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive tecto nem afecto!
Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:
Foi este o Natal de Jesus?!
© João Coelho dos Santos
In “Lágrima do Mar”, 1996